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O que diferencia o artista da pessoa comum? A vaidade.

Evidente que gênios também os há. Às vezes, simultaneamente, artistas e gênios. Estes, quando o são, assim como os matemáticos, fotógrafos, carpinteiros gênios, passam pela vaidade, levam-na consigo ou não, mas sua obra é que permanece. Aos que não somos gênios, resta a semelhança na vaidade e a possibilidade de tê-los como inspiração. Fingir o gênio, como se fôssemos. Se vaidade já a temos que nos venha também o rigor, a obstinação, a grande paciência do gênio. Como por esse meio não se adquire um grande talento - o aspecto do gênio ao qual não teremos acesso - tenhamos, pois a humildade de reconhecer nossa insignificante pequenez (ainda que vaidosa) e, quem sabe, advenha daí, justamente, qualquer experiência iluminatória.

Na Aurora, de Murnau, o personagem que sonha com uma vida nova precisa retornar à origem de sua auto-imagem, volta mítica, retorno à idéia primeira de identidade. Sua "vida nova" é desejo transposto em fantasia, no sentido psicanalítico, desejo não sublimado, realizado apenas em imaginação e que, inevitavelmente, se confrontado com a realidade, deteriora, distorce. Este o aprendizado da maturidade: resignar-se aos limites do real, estar conforme, separar realidade da fantasia. Resulta muitas vezes daí o conformismo, sequela na maturidade do luto não resolvido da infância perdida.

E o artista, que precisa resguardar em si o jogo lúdico do faz-de-conta, o mundo mental que se transporta para o mundo concreto através de seus pequenos objetos-idéias, castelos de sonho, sob pena, caso contrário, de enrijecer-se perante a realidade que pretende realçar, desvelar? Como amadurecer, enquanto artista? Talvez todo artista, gênio ou medíocre, possa ter isto para partilhar, a experiência infantil preservada. Se a vaidade é a onipotência infantil arraigada no adulto, o artista, na tentativa de amadurecer, corre permanente risco de, como na piada, jogar fora a criança junto com a água da bacia. Estátua de pedra que olhou nos olhos a realidade, o homem comum carece da experiência artística que lhe forneça as sandálias aladas e o escudo de Perseu. A imagem projetada da Medusa é o que o artista tem para oferecer em tempos pós-míticos. Mas, dilema! perigo! trágico destino, a ele mesmo cabe a travessia que o pode levar ou não ao outro lado do labirinto e uma Górgona inteiramente sua para o flerte. Que espessura tem o fio de Ariadne onde terá de se dependurar o grosseiro artista? Como entender o mecanismo do mundo e não cair vítima do funcionamento de sua engrenagem, nós, paupérrimos artistas, nós que não somos, nem nunca seremos, gênios?
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