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Depois Daquele Beijo

Estranho formigamento
nos lábios, pela manhã.
Descubro tratar-se
de uma memória.

Memórias às vezes doem,
às vezes podem gelar o sol.
Quentar o frio no inverno,
produzir um desvario
de laços, um inferno
de nós, uma rede
que acalme o sono,
surgir como surge a fome.
Essa, lateja
e desce
desde a boca até a cintura,
basta que eu me aquiete,
como se mãos me tocassem
de novo e diferente.

Tão física
tão corpórea
a memória
se manifesta,
e que outra forma
haveria?
que o ofício de escrever
não se presta,
nem dá conta.

Se antes, eu imaginava
e a caneta corria o papel
meus dedos agora sentem
o desejo de deixar marcas
por outras superfícies
pontuar longos parágrafos
até cobrir
a extensão das tuas costas,
garimpar rimas com as mãos,
uma em cada tua coxa,
simétricas
porque depois daquele beijo
dei pra imaginar com a pele
e o impulso de dizer
o indizível
ficou tão rente
que eu desisti;

Talvez,

se eu tivesse a arte
de um escultor,
forjasse,
à maneira cubista,
tua representação estatuária.
Os olhos, simultâneo
à esquerda e ao contrário,
não me perderiam de vista.

Ou então as mãos precisas
do ceramista
que modelasse
a argila das curvas
do teu quadril, do colo,
as alças delicadas dos braços,
retornada ao barro
de onde viemos.

Quem sabe eu relojoeiro
possuísse as ferramentas
mais adequadas
e os rubis
e ajustasse
tuas engrenagens
com o máximo de precisão.
Incansáveis
nos amaríamos
as horas todas do dia.

Ou, fotógrafo,
congelasse,
para mantê-los,
o momento
e o lugar exatos
em que a língua,
num passeio,
fez eriçar os pêlos.

Captasse os matizes
do brilho dos olhos
entrevisto entre as pálpebras
entreabertas
e pintasse um quadro
com olhos felizes.

Com lápis delineasse
o sorriso de dor
que não dura mais que um segundo
no rosto e desaparece.

Acupunturista
em busca dos teus meridianos
da loucura
da entrega
e dos desvãos.

Chef a cuidar
de aromas,
temperos,
palavras do paladar

ou o médico legista
que dissecasse
cada músculo, teu, teso
você morta de prazer

Talvez aí
eu dissesse
o que antes não ousaria

é que depois daquele beijo
me vi sem rumo
e a poesia
que me explicara
não era já
suficiente
não mais
que 'de repente',
no dia seguinte
me veio o alerta à boca:
um tremor e o gosto,
a memória!
Queria (pudesse eu ter)
a rota certa
que levasse até dentro de ti.