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Cantiga de Amigo 2

Ela espichou o corpo, preguiçosa,
no meio da festa, no tapete da sala.
Ao seu redor, pra mim,
havia um halo
e desejei tocá-la.

Ela jogou conversa fora
até (quase) perder a hora
na hora do cafezinho
mas uma vez só
(as outras todas muito curtas)
porque é moça séria
e não descuida da labuta.
Observei-lhe a silhueta que se ia embora
e de longe,
sozinho,
me perguntei: como seria?

Marcamos de almoçar,
comemos pouco.
No esforço de mastigar cada pedaço
da prosa
(horas de almoço,
o nome já está dizendo,
acabam depressa)
foi como se a ela estivesse, eu, devorando.

Trocamos cartas
e foi um sonho
as noites altas
e os céus risonhos
passeamos de mãos dadas
e o mundo inteiro era nada
perto das vezes que conversamos
perto das vozes que inventamos
perto das luzes que acendemos
das poses que modelamos
por escrito.

Um par de ases
num jogo perfeito
é o que éramos.

E veio o dia em que ela veio
e quis ficar bem junto.
Pela primeira vez, portanto,
eu não a receberia em casa pelo correio.
Abri-lhe as portas
a da frente
a do lado e a do meio
e, como poderia ser diferente?
disse-lhe: entre
e me pegou de cheio.

Ela espichou o corpo, deliciosa,
no meio da tarde,
no tapete da minha
humilde cela,
tenho certeza do que falo,
era mesmo ela,
reconheci-a pelo halo.

Depois ficamos de conversa fiada
e desfiamos cada
uma das nossas várias
eternas certezas
temporárias
nossos projetos, nossas histórias,
conversas longas, curtas, piadas
solenes promessas
à toa,
prosa das boas
de quase perder a hora,
mas só quase
porque, como eu dizia,
ela é moça séria
e agora queria,
sem demora,
saber como o mundo
de dentro da gente parece
quando muda de fase
e passa pro lado de fora.

Se somos da mesma
matéria
de que é feito o sonho
por que haveria
de haver essa sensação
de vácuo?
Por que esse brilho opaco
que permeia a realidade
e opõe,
entre a vida
e o pensamento,
a dúvida?
Por que deveria
a Medusa
ter o poder
de transformar em pedra,
além do herói,
a própria musa?
Por que esse espaço seco,
esse veneno inócuo,
esse oco?
Por que que a vida é um buraco?

Pensava eu
em tudo isso,
fechado na minha toca,
aquela mesma
em que ela hoje
me visita.

Por que mais uma carta?
Por que o sono me foge?
Por que que algo
dentro de mim
cisma?

Por que no idêntico
momento
em que,
mentalmente,
opus, em lista,
o claro e o escuro
o amor e o ódio
o óbvio e o confuso
a noite, o dia,
a guerra, a paz,
o homem, a mulher,
o menino, o adulto,
o novo, o velho,
o fresco, o podre,
a dor, o prazer,
o frio, o calor,
o tudo, o nada,
o ontem, o amanhã,
o embaixo, o em cima,
o paraíso e a maçã
e tudo que não combina,
lembrei-me também da rima,
que nos oferece aos pares
os objetos mais díspares
e, permita-me que compare,
faz com que Shakespeare
e uma... árvore,
por exemplo,
tenham algo em comum,
assim como um casebre,
possa ressoar um templo,
no meio de lugar nenhum?

Que fato da existência,
que vestígio
do mundo concreto
me leva a estes pensamentos
e não a outros,
mais nobres ou corriqueiros?

É o cheiro!
É o perfume!
É a memória
da moça séria
se rindo
e me arranhando
as costas.
A epiderme,
é o perfume!
o cabelo
as mãos
que me vasculham pelos
recantos, os vãos
e o pescoço,
meu recomeço
onde vou buscar
o cheiro,
- o perfume!
sussurro seu nome
e, ligeiro,
desço;
até depois que ela
partiu
eu não esqueço
e imagino
no corpo
um verso.

Misturas,
tanto há que se misture!
Eu e ela
o ilusório e o real
la vida es sueño
água mole, pedra dura
o...Tao!

quem sou eu
que me entretenho
nisso até o Sol
romper a noite pela janela?

Assim, cansado
de escrever
saciado como quando
termina o amor
descanso e os nervos
elétricos ainda
soltam faíscas
a pálpebra pesada
me indica
a hora da trégua
e não mais do que isso.
Daqui a pouco,
eu, submisso
às rígidas regras
da releitura,
continuarei à procura
da expressão mais pura,
Apolo à beira do abismo,
por amor de descrevê-la
mais bela
do que ela
por si mesma
já é,
princesa protegida,
filha de um senhor
el Rei.

Prestam
pra que
os poetas,
senão para imitar a vida?
Ela é inda melhor
do que eu imaginei,
ou é assim (meninos, ouvi.)
que soa
o grito do homem voador
ao cair em si?