Conversa de Botequim
te seqüestrei, vou te reter pra sempre
na minha idéia
Enquanto galgávamos os bancos altos à beira do balcão (neste botequim não há mesas, só balcão) o garçom trouxe os primeiros dois chopes.
Respondi que, mesmo sendo a vida uma obra, como você vinha dizendo um pouco antes de atravessarmos a porta giratória da entrada, inacabável, toda a minha fantasia de artista insiste em voltar-se para o desejo de construir (deixar, pensei pretensioso, mas não disse) uma.
Escrever livros, plantar árvores, ter filhos, o que será que essa anedota quer dizer?
Que necessidade é essa que se instala por ordem daquilo que se pensa, sente e faz? Que impulso é que nos habilita a acreditar que o que temos a dizer serve para alguém ouvir?
Pensar todo mundo pensa e, afinal, um corpus teórico (mudei a entonação da voz para itálico ao pronunciar um pouco mais devagar corpus teórico) qualquer é sempre possível de deduzir das atitudes de qualquer pessoa, basta que se a observe com atenção, mas alguns têm o gosto de vir a público! sorri, quase imperceptível, para dar fluência e não parecer pedante.
Contei que estava escrevendo um poema metrificado sobre Perseu e a Medusa inspirado num capítulo das Seis Propostas Para o Próximo Milênio do Italo Calvino.
"Ele usa as situações do mito como metáfora do fazer artístico", você lembrou daquele outro encontro.
Acrescentei que estava precisando acabar um texto em prosa sobre a vaidade, os textos eu mencionei porque me pareceram ecoar a conversa, ofereci mostrar quando ficarem prontos, se você quiser.
O assunto migrou na velocidade com que sempre migram à beira dos balcões, vi surgir na minha frente um segundo chope (neste bar, aos 80% bebidos, os copos são automaticamente substituídos por um novo), me esforcei pra lembrar de beber com um pouco menos de pressa e dali mais um tanto já estávamos passando a comentar o poema que eu mandei, a Balada do Cachorro Louco.
Percebi que ainda trago nítida a memória do momento em que a escrevi.
Havia um grupo de alunos de canto, adultos, todos biólogos e atuantes no combate à transmissão da hidrofobia.
Ri por dentro observando a sua expressão de estranhamento e segui falando até explicar que eram aulas que eu dava num certo Centro de Controle de Zoonoses, uma repartição pública responsável pela vacinação anti-rábica na Grande São Paulo.
Um grupo de profissionais devotadíssimos à causa, a despeito do que se diz sobre o desleixo no serviço público, foi o que eu encontrei quando comecei a lecionar para aquelas pessoas naquele lugar.
Você não sabia, mas é ali que fica a mais que temida... Carrocinha.
Animais pegos na rua (qualquer um, cachorros, gatos, cavalos, porcos!!) são levados para lá e se algum dono não os vem buscar, acho que não viram sabão, mas são, sem dúvida, sacrificados.
Parte-se do princípio que bicho que não é de ninguém transmite raiva.
A única maneira segura de evitar o contágio é mantê-lo doméstico (consegui o itálico desta vez conferindo a doméstico uma certa intenção de ironia e torci pra você associar o comentário àquela história das galinhas e das águias, não sei bem por que). A vacinação vem como medida, garantem, secundária.
Devem saber do que falam, pois há mais de vinte e cinco anos não se registra um único caso de raiva em São Paulo, resultado indiscutível da eficiência do trabalho de prevenir e capturar que eles coordenam.
Você quis saber como se manifesta a hidrofobia num ser humano e eu expliquei que os sintomas são os mesmos para qualquer bicho, menos os ratos, e de toda maneira - você deve lembrar da descrição que eu fiz - horripilantes.
Pensando em todas essas coisas e profundamente envolvido com o trabalho, resolvi montar com o grupo um musical infantil didático sobre a transmissão da raiva animal. Seria uma ferramenta a mais no esforço permanente de conscientização que eles promovem e uma chance de dar forma e significado pras coisas todas de música que nós estudávamos e a tudo que eu presenciava indo lá semanalmente.
A discreta melancolia que se abate sobre cada um dos funcionários deste lugar, misto de culpa e resignação, talvez científica, serve como uma espécie de espelho opaco para aquela outra tão mais densa e inescapável que a gente sente na presença de seu vizinho mais ilustre: a dois quarteirões do lugar onde vão morrer os cãezinhos sem dono fica o prédio gigantesco do Carandiru!
Contar isso tudo não levou pra mim mais que dois chopes, mas sem dúvida a sua expressão era de um certo cansaço - conclui depois de um tempo distraído observando a linha do seu antebraço subindo desde o cotovelo, passando em curva pelo pulso até a mão apoiando o queixo, olha, eu seria capaz de conversar noites inteiras, falar sem parar emendando assuntos uns nos outros, fluxo de consciência, associação livre, mais um chope! segui contando como escrevi a peça, as músicas da peça, dirigi a peça, atuei na peça e como tudo resultou num trabalho educacional de que me orgulho muito.
Conseguimos, eu e as moças (adivinhe se os homens todos que trabalham lá quiseram se envolver?) montar um pequeno, precário e mal feito espetáculo onde elas apareciam inteiras, entregues, falando das coisas com as quais conviveram anos a fio, mas de uma forma renovada, "cantando" o trabalho, na "pele" dos cachorros.
Eu era o cachorro louco, o personagem que contaminava o cachorro/mocinho da história.
Morríamos os dois, eu cantava o rap e ele Blue Moon, versão brasileira: este que vos fala.
Agora você já sabe que depois do sexto chope eu começo a cantar.
Blu-ue moon
Se a noite tem lua-a-a-ar
O azul do céu me faz le-embrar
Da luz do teu olha-a-ar
Co-o-mum
É tão comum ficar
A-assim
Vagando pra lugar ne-e-nhum
A noite não tem fim
Quando o clarão
Da noite
Se fo-o-o-or
E o calor
Da luz
Do Sol
Che-e-gar
Me encontrará
Tentando
Achar ra-a-zão
Pra me lembrar
Da cor do teu olha-a-ar
Tão azu-ul
A-azul
Luar azul eu sei de-e cor
A dor que fica ao meu re-e-dor
Até o Sol se pô-or
No tempo que levou pra ir ao banheiro eu me ocupei lembrando as cartas que você tem mandado: ir à caixa de correio, abrir o envelope, uma ponta de ansiedade e ler, reler, imaginar a resposta, planejar uma idéia, escrever, é tão bom escrever!
Quando voltamos cobrei que me enviasse logo um próximo texto, já tenho alguns comentários esboçados mas gostaria de ter uma visão mais global da obra. Sorri. Onde estávamos? Quantos chopes você já bebeu?? Garçom!? mais um?!! sabe? o que mais me chama a atenção no cachorro louco é que ele não é nem um pouco parecido com o que a gente imagina dele: sente dores horríveis e procura um lugar escuro pra ficar imóvel, escondido. Só quando alguém vai mexer é que ele ataca. De dor.
Depois que a doença se instala o bicho fica lá, esperando pra morrer.
O perigo é quando, já infectado, ainda não tem sintomas: disputando fêmeas normalmente e contaminando todo mundo.
Transformar tudo em poema, isso que eu queria.
O cachorro louco da Balada é um pouco vítima, um pouco corruptor, mas, principalmente, auto-indulgente, ou será que não é nada disso? acho que escrevi um pouco bêbado e esqueci.
Já ia começar a recitar aquele soneto que eu fiz sobre engenharia mecânica quando vi surgir, desta vez, a conta.
Ando desconfiado que foi você que pediu.
Saímos de lá e eu segui andando, conversando sozinho, esbarrando nos cachorros da rua, pensando em sabores, iscas e relacionamentos: o peixe preso no anzol, sem paladar e já sem ter pra onde ir.
Esse mundo é uma metáfora, lembrei cantarolando.
E se amanhã eu morrer?